O mapa da criatividade em Fernando Casás. (Texto completo)

Entrevistamos o artista hispano-brasileiro por ocasião da ampla retrospectiva que lhe dedica o CGAC / Centro Gallego de Arte Contemporáneo, um dos mais importantes museus da Espanha.

Quando em 1989 o crítico de arte Marc Berkowitz concedeu um dos últimos Prêmios Ibeu em que participou, este recaiu sobre o artista hispano-brasileiro Fernando Casás, que então se preparava para voltar a viver na Europa. A obra premiada era uma série de papéis artesanais de grandes dimensões feitos pelo próprio artista. Não era uma obra diferente só no material ou na apresentação. Pendurada nas paredes e ocupando parte do chão, ela enchia o espaço das galerias onde foi simultaneamente apresentada, no Rio e em São Paulo, com as cores e os relevos da terra queimada e oferecia um outro lado aos sentidos, surpreendendo a quem entrava na galeria com um intenso cheiro de fumaça. Porque a obra se titulava Amazonas, Série Negra e era a metáfora sobre os incêndios que devastavam as florestas do norte brasileiro.

De volta à Espanha onde, segundo ele mesmo diz, a natureza é domesticada se a compararmos com a brasileira, as suas obras passaram a refletir as áreas industriais que foram abandonadas ou os desastres dos petroleiros que naufragam destruindo ecossistemas únicos. Ainda que sempre atento ao meio ambiente, nada mais distante deste artista que ser um engajado compulsivo ou um politicamente correto. Ao contrário. Produz uma obra experimental, conceitual e refinada, que não se deixa rotular ou classificar. Seu trabalho reflexiona sobre a ética, o que também transparece no seu alter ego de professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Vigo. Muitíssimos anos depois de que aquele menino que havia sido trazido do frio se admirasse com o pedaço de Mata Atlântica que via da janela do seu quarto, para onde fugia para catar ninhos abandonados, penas coloridas e restos de madeira, Fernando Casás continua deixando-se surpreender pelos restos naturais e continua nos surpreendendo com o que cria a partir deles. Constatamos isto uma vez mais em 2011 no Rio de Janeiro quando, na galeria do Centro Cultural Cândido Mendes / Ipanema, nos levou a viver a realidade e ao mesmo tempo a sonhar, quando visitamos a exposição Bom dia, Brasil. Boa noite, Brasil. Neste momento (2013) está apresentando uma individual no CGAC Centro Galego de Arte Contemporânea em Santiago de Compostela.

Elisa Keller: A sua extensa obra, já exposta em Genebra, Jerusalém, Chicago ou Barcelona, sempre se escapou dos parâmetros do convencionalismo ou de qualquer tentativa de classificação, não se deixando aprisionar, rotular ou encaixar. Sendo o conceito a base fundamental da sua obra, seu trabalho discorre paralelamente tanto em esculturas de caráter permanente como nas obras efêmeras, tanto a partir de restos naturais como no uso das tecnologias. Você nos contaria um pouco sobre isto?

Fernando Casás: Nos trópicos, só o ato de olhar já é impactante. Quando o navio que me trazia entrou na baía de Guanabara, eu era muito pequeno. Saía do inverno e chegava ao tórrido sol. Você vê, nasci na Galícia, uma terra do norte da Espanha onde chove muito, a bruma é constante e as pessoas, naquela época, isoladas umas das outras e dedicadas à pesca ou ao cultivo difícil de um campo que só produz uva, batatas, uma couve maravilhosa e pouco mais. O Brasil é o outro lado, é a luz e consequentemente alegria, mistura de cores, cheiros, sabores, Eros. Introjetei estas duas terras e isto me despertou um sentimento de misturar, de compartir. Na verdade ainda mantenho e quando venho aqui trabalho no meu atelier de Nova Friburgo. Meu trabalho nada mais é que uma linguagem que sempre acaba falando sobre esta situação. Assim que as obras efêmeras, em geral feitas diretamente no meio ambiente e que por isto chamo de Entradas na natureza, são na sua essência um sistema de evidenciação das coisas mais simples, de compartir o que passa despercebido, o caminho percorrido vendo as marcas das estrelas sobre a Terra como orientação para quando haja retorno. O material que recolhi e recolho, que aparece sob forma de ajuntações ou de obras mais formais como painéis e esculturas, também comparte este des-percebimento . O material para mim é a linguagem do conceito e, a partir daí, eu passo a ser instrumento do material em simbiose com ele. Entrega e caos.

Neste sentido busco, no fazer da minha obra, a desordem do corpo animal, escutá-lo por dentro e perceber a suprema ordem. Aquilo que sempre chamamos de caos é esta suprema ordem, incapaz de ser vista, vista de saber ver, pelo homem castrado pelas religiões e outras manias. Saber que podemos nos modificar a nós mesmos, e temos a obrigação de tentá-lo. Que o sagrado e não a religião vem da experiência com a natureza, da simbiose com o poder da natureza. O problema é que ela nos abandona, queremos que nos abandone, como uma vingança nossa à possibilidade de que a Terra seja um paraíso deste mundo e não do outro. Que tudo está dentro de nós, no cérebro e suas ramificações e disto tudo trata a arte, algo que não tem muito sentido mas que, ao mesmo tempo, é um dos elementos que permitem que o planeta ainda não se haja aniquilado. Tudo é muito simples e por isto mesmo extremamente complicado. O sentido do místico, do transcendente, do absoluto, que pode ser detonado, experimentado, através da alteração da consciência. Pensar em Eleusis ou, muito anteriormente, no estado de percepção do homem de Altamira e Lascaux . Uma caverna expandida dentro de outra caverna que se transforma também em expandida. O alterado, o sagrado, entre o sangue que corre por dentro das veias e as veias do cosmos. Simbiose e amálgama. O homem como alquimista, a totalidade percebida em sua totalidade. A América do Sul, na região que se conecta com os rios, principalmente o Amazonas desde a sua nascente, considero que é onde reside o mais fino e potente conhecimento.

E.K.. Podemos então falar de uma forte influencia do Brasil na tua obra?

F.C: É a influencia sempre presente, a brasilidade da e na obra e em mim mesmo. Me formei no Brasil tanto física como culturalmente, esta é a minha circunstância mais real e, ao mesmo tempo, des-real, talvez porque o que conhecemos como realidade é uma sombra do que existe. Me sinto brasileiro, como qualquer pessoa que chega nesta terra. Penso em brasileiro, falo melhor o português que o espanhol ou que o galego, o idioma da minha região, mas claro que as minhas raízes existem e também estão muito presentes. Gosto de parafrasear Stefan Zweig dizendo que me sinto em casa tanto aqui como do outro lado do oceano, não sabendo até hoje onde ficar. Mas quando comecei a ser consciente de mim e de meu entorno, o mais importante talvez tenha sido essa hibridação cultural que neste país absorve tudo e leva a uma inventividade impressionante. Oswald sabia isto perfeitamente. Antes apareceram para mim Lautréamont, Blake, Sousândrade e Qorpo Santo. Quando conheci o Manifesto Antropofágico, foi clarificador e, a partir daí, a confirmação de um caminho. Tenho uma obra que considero simbólica e metafórica, um cupinzeiro que se formou no lugar que me servia de atelier, se foi espalhando e absorvendo objetos que estavam à sua volta como folhas de papel, um funil de plástico, um pé de meia de nylon, outras coisas que não conheço mas que estão no seu interior, no seu, no nosso inconsciente. Me apropriei do cupinzeiro como obra com o nome de Antropófagos são os outros, eu me como a mim mesmo.

E.K. As duas últimas exposições que você apresentou no Rio de Janeiro, Bom dia, Brasil e Túneis de Cupim, compartiam a magia vinda do uso da fosforescência e um pouco a idéia do caminhar sobre estrelas, mas o Cupim ia na direção de nossa indagação mais interior, que é a pergunta existencial e cósmica por excelência, enquanto que Bom dia, Brasil entrava diretamente no tema brasileiro, em todas as diferenças que se igualam no momento em que temos a possibilidade de viver os sonhos.

F.C. O meu trabalho vem de uma pesquisa transversal, isto é, não paro numa só fonte, não é que busque ligações entre os diferentes temas, eles aparecem, tudo está interligado e as ligações deixo que dialoguem com o inconsciente. Assim acabo me envolvendo com aspectos arqueológicos, antropológicos, geológicos, com as ligações entre a física quântica, as correntes do pensamento oriental, que cada dia se vão evidenciando mais, e o grande poder da floresta amazônica. Tudo é uma coisa só e a obra sai deste cruzamento. Quando comecei a preparar a exposição Túneis de Cupim, apresentada em Agaete, nas ilhas Canárias e no Centro Cultural dos Correios, aqui no Rio, os cientistas pensavam ter localizado um túnel de minhoca, o que seria a confirmação de suas anteriores teorias, um possível tipo de passagem entre uma dimensão e outra. Uma idéia que lembrava minhas pesquisas sobre o cupim, as formigas e outros insetos que foram desenvolvidas na época em que eu vivia no Brasil. Enquanto trabalhava com aquelas madeiras que pareciam planetas comidos e desgastados, mais de uma vez me perdi literalmente nos canais que os insetos fazem, como se eu fosse o próprio inseto. Bom dia Brasil foi uma exposição que vem de outros princípios. Ultimamente na Europa saem notícias incríveis sobre o Brasil. No entanto, nas minhas estadias aqui, pude observar de uma maneira mais minuciosa o que parece estar acontecendo. Se por um lado a igualdade não só é necessária como é a coisa mais desejável que possa acontecer em qualquer sociedade, por outro lado esta pretendida igualdade que está sendo conseguida no Brasil vai caminhando lado a lado com o consumismo selvagem, que é a implantação das falsas necessidades. O Brasil é tão importante para mim como a terra em que nasci, e gostaria que este atual crescimento fosse mais equilibrado, mais ligado ao homem, à liberdade. Se há um país que possui todas estas qualidades, é esta terra tão especial e sua gente. Quem sabe seria possível conseguir uma nova via de vivência e convivência, uma via brasileira, onde o bem estar e o onírico estivessem juntos equilibrando como faz, desde sempre, o prazer de todo tipo de vida. Atualmente o sagrado reside aqui, na América do Sul, onde ainda vivem pequenas centelhas do que era este continente antes da conquista.

E.K.: O tempo joga um papel fundamental na sua obra. Tenho um recorte de um jornal espanhol onde o artista norte-americano Robert Morris, precursor da Arte Conceitual, fala sobre a Ilha das Esculturas de Pontevedra, onde ele ergueu um Labirinto no qual o espectador pode entrar e onde você plantou árvores de pedra apropriando-se de um bosque. Comenta Morris que ele se identifica com a carga de memória presente na sua escultura Lamed Vav, os 36 Justos.

F.C.: Morris percebeu perfeitamente a busca do nexo vital que se encontra naquelas pedras. A memória e o tempo são os eixos da minha obra, minha intenção foi sempre flagrar um momento, congelar o instante que foge e, se possível, o que já fugiu. Neste sentido apresento nesta exposição do CGAC um trabalho que vinha desenvolvendo desde 2004, quando soube que o telescópio Hubble ia se aproximando ao gênesis, à memória da grande explosão. Se aceitarmos a teoria do Big Bang, o universo tem treze bilhões e setecentos milhões de anos e foi esta quantidade de anos que imprimi através de processos digitais. O projeto consta de 5.576 folhas de papel offset A3plus de 240g/m². As folhas estão sendo distribuídas aos visitantes da exposição. Cada uma contem numeração diferente, a contagem de todos estes anos em ordem decrescente, desde o ano do meu nascimento até alcançar o zero zero zero, que seria o ano da criação do universo. Contei os anos de mil em mil, já que se fosse impresso de ano em ano completaria uma linha de duzentos e setenta e quatro mil quilômetros e a obra pesaria 200 toneladas. Somos uma sopa de estrelas e esta memória está registrada no adn cada um de nós.

E.K. Sigo a sua obra desde muitos anos e cada vez mais tenho a impressão de que ela é cíclica. Você trabalha com a água, por exemplo, inclusive desenvolveu um processo próprio para captar o movimento dos líquidos. Quer dizer, não imita nem copia, simplesmente deixa que ele se apresente. Depois de fazer não sei quantas obras, ou mesmo enquanto está fazendo, você de repente retoma, por exemplo, o poliéster, os papéis, ou os restos naturais. Sucessivamente vai e volta, como as marés. O interessante é que neste ir e vir você não se repete, simplesmente em cada momento vê de outra maneira. Como é este trabalho que funciona ao mesmo tempo em diferentes frentes?

F.C. A onda que bate na praia do Brasil é a mesma que bate na Galícia; mas cada onda é diferente da outra. Em 1991, pouco mais de um ano depois de me radicar outra vez na Espanha, me convidaram para dar aulas na faculdade Belas Artes da Universidade de Vigo. Eu não sabia o que fazer, mas o convite era muito amigo e hoje se transformou numa experiência luminosa e, ao mesmo tempo, esgotadora, já que o constante debate com os alunos não deixa descanso. A maioria deles se transformou em gente muito próxima a mim, até hoje. Foi muito complicado porque penso que a arte não deve ser ensinada; mas a verdade é que hoje em dia as pessoas que querem se aventurar por este campo deveriam ter todo tipo de informação que gere conhecimento e pesquisa. Há milhões de artistas produzindo arte no mundo e na sombra desta árvore frondosa e acolhedora também se abriga uma extensa fauna que, fatalmente, acaba impondo modas e padrões. Assim penso que um artista se equilibra entre o conhecimento e sua sensibilidade e isto dá lugar, no meu caso específico, a que eu trabalhe de varias maneiras e ao mesmo tempo, onde cada aspecto de uma situação acaba sendo captado de uma maneira diferente, já que a obra, penso, nasce inconscientemente, sem o ditame da razão.

E.K. Agora o CGAC, um dos mais importantes museus espanhóis, está dedicando a maior parte de seu espaço a uma exposição das suas obras. Gostaria que você me comentasse principalmente sobre o famoso Gabinete do colecionador, que está sendo exposto em grande parte pela primeira vez.

F.C. O Gabinete nada mais é que mais uma coleção de restos, como sempre, que juntei toda a minha vida, coisa que começou nos finais dos anos 50 quando meus pais iam comprar ostras na ponte da Barra da Tijuca e depois dávamos um passeio por aquela extensa costa de mar revolto onde meu pai uma vez quase morreu afogado. Fui juntando conchas, restos de madeira trazidos pelo mar, sementes, espinhas de peixe, alguma peça de metal. Anos depois percebi que era um quarto das maravilhas, como os da época do Romantismo, o quarto dos arquétipos onde se acumulavam objetos estranhos que guardavam os enigmas do mundo. Como o mundo era naquela época um grande desconhecido, tudo maravilhava e, mais que isto, tudo era possível. Era comum se encontrar nestes gabinetes objetos como escamas de dragão, pérolas negras, orquídeas fosforescentes… Nada impede que imaginemos ou que encontremos o momento da magia debaixo de cada pedra ou nos restos de natureza que nosso olhar civilizado já não é capaz de ver.

Uma ampla visão sobre esta obra forma a retrospectiva com curadoria de Miguel von Hafe que o CGAC / Centro Gallego de Arte Contemporánea de Santiago de Compostela, um dos mais dinâmicos museus da Espanha, dedica ao artista e que estará aberta ao público até fevereiro de 2013. Visitar esta exposição é ver uma coleção de obras com caráter obsessivo e é, literalmente, caminhar sobre estrelas. Perder-se nestes pequenos mundos que nos desvela Fernando Casás é uma experiência única.

Elisa Keller

Rio de Janeiro, 2013.

* Publicado originalmente em: Revista InComunidade. Ano 3, edição 36. Porto, Portugal. Julio 2015.

Revista InComunidade (Porto, Portugal)

http://www.incomunidade.com/v36/art26.php?art=26