Fernando Casás: um artista secreto. (Texto completo)

No Rio de Janeiro, o artista plástico Fernando Casás mostra a viagem onírica em direção ao cosmos como rota de fuga da claustrofobia planetária. E defende que ao menos o ato de sonhar seja um ato de liberdade.

O que me levou a cursar História da Arte foi descobrir que o poder da arte segue intacto, por mais que as técnicas, as modas ou seus objetivos mudassem e em consequência a própria arte sofresse enormes transformações ao longo dos tempos. Este poder de transmitir ideias e sensibilidades segue intacto e nos faz refletir e conhecer dum modo alheio a códigos pré-estabelecidos. A obra de arte pode ser contemporânea, romântica, rupestre, renascentista; podemos classificá-la, colocar rótulos, encerrar em compartimentos estanques… ela sempre vai encontrar a maneira de transmitir algo mais do que aquilo que percebemos num primeiro momento, de buscar no fundo de cada um de nós e trazer à luz aquilo que não tínhamos a mais remota ideia de que existisse e estivesse ali.

Um dia tive a sorte de conhecer a obra de Fernando Casás, este artista pouco convencional que não gosta de aparecer nem de que se publiquem suas fotos, que trabalha sem descanso e que, depois de ser representado por importantes galerias, optou por sair de maneira drástica do sistema, como num mecanismo de repulsa. Passou a produzir fora dos circuitos, desligado de entidades participantes do mercado. Um artista secreto, diríamos, com uma vastíssima obra que é distante e envolvente ao mesmo tempo, que sempre tem muitas leituras atrás da primeira leitura evidente, uma obra que começou a ser feita aqui no Brasil. Mas é um artista que, principalmente, declara que considera a arte, a sua obra – e a sua vida – regidas pela ética, que para ele é muito mais importante que a estética. Que assume claramente seus pontos de vista, mesmo que estes estejam em contra das correntes gerais, longe do pensamento único e correto imperante no nosso tempo. Esta preocupação social e política, no entanto, não diminui em nada o seu magnífico trabalho criativo.

É uma pessoa curiosa – já Marc Berkowitz nos deixou um testemunho sobre isto nos idos de 1980. Artista conceitual, consequente, sempre preocupado com a pesquisa e o bem fazer. Tantos momentos inteligentes e interessantes podemos encontrar na sua obra que penso que mais que fazer uma crítica, uma análise ou dar uma opinião, o melhor é deixar o artista falar. Para mim é um privilégio conhecê-lo e poder usufruir da sua obra. Parece-me importante acrescentar que ele é professor de Arte e Ambiente Natural na Universidade de Vigo, Espanha, onde vive, e é considerado um dos iniciadores dos movimentos de Arte e Natureza, que englobam o Land Art, Earth Works e Eco Art, entre outros. A partir do próximo dia 9 de maio (2011) a sua obra poderá ser vista na galeria do Centro Cultural Cândido Mendes da rua Joana Angélica 63 em Ipanema, no Rio de Janeiro, na exposição intitulada, certeiramente, “Bom dia, Brasil. Boa noite, Brasil”.

 

Elisa Keller: Num dos seus últimos artigos publicados[i] , você comenta sobre suas aulas na faculdade de Belas Artes, onde o olhar subjetivo, segundo diz você textualmente, tem “cada vez mais importância diante de uma sociedade ausente de fronteiras”. Ao mesmo tempo, a sua preocupação central, que você sempre faz questão de frisar, é a ética e a responsabilidade do indivíduo diante desta mesma sociedade.

Fernando Casás: Para quem trabalha com a natureza em contato direto e, ao mesmo tempo, conceitualmente, esse diálogo sempre nos leva a aprofundar na pesquisa com e do natural – e é necessário definir, também, o que é natural no século XX e XXI. Diria que é impossível trabalhar neste campo, onde lido com a vida e suas metáforas, sem levar em consideração a ética, pois a Natureza é o que gera a ética. De maneira que para mim este é o caminho direto para uma ecologia inter-racial, social, sexual e política, porque arte é política. A arte a que me refiro fala da procura de uma subjetividade não dirigida ou manipulada e isto decididamente não é um caminho fácil.

E.K.: Viver fora dos circuitos de difusão e comercialização da arte, ser um herege, transformou você num marginado da arte?

F.C.: Penso que não me transformei num marginado, mas sim que me marginei do mercado de propósito. Minha postura nem modifica nem acrescenta nada. Mas é a via mais consequente e politizada para mim. Se o produto chamado arte, que produzo, está acompanhado de complexidades não levadas em consideração pelo mercado, a mim o mercado não me interessa e me parece mais consequente que um senhor jogue na bolsa que um artista produza obras procurando somente ficar rico. Por que não assumir uma postura clara, sem todo um universo social e de manipulações para ganhar dinheiro? Ao mesmo tempo, penso que é fundamental passar pelo sistema e comprovar – e não falar desde fora, como um ressentido. Modificar, se possível, um sistema, é uma situação conseguida desde dentro do próprio sistema. Talvez o caminho mais sólido para que um indivíduo se transforme em herege é que antes tenha sido minimamente crente. Evidentemente, as exceções são um prazer.

E.K.: Você estudou no Rio de Janeiro, na Esdi, a famosa escola de design que introduziu aqui o pensamento bauhausiano de que a forma segue a função, portador talvez dum certo minimalismo, duma certa rigidez conceitual. Ali foi onde, no entanto, você começou realmente a se assumir como artista e assumir a natureza como a sua particular matéria de arte.

F.C.: Antes de entrar para a Esdi, minha formação estava ligada às matemáticas. A biblioteca da Esdi foi uma fonte de conhecimento ao qual antes eu não havia entrado em contato, e toda a informação que ela transmitia estava conectada com o construtivismo, com a ideia da função como paradigma estético, com o qual estou até hoje totalmente de acordo. Mais tarde cheguei a propor na faculdade de Belas Artes de Vigo uma série de trabalhos que discutissem a obra de arte como ergonomia, que tipo de ergonomia se podia ter numa obra de arte, tendo como definição de ergonomia a adaptação da máquina ao homem. Que aconteceria neste contexto, onde a máquina seria a obra de arte? Mas poderia ser ao contrário já que, por definição, a vida imita a arte. Neste sentido, a obra de arte pública, por exemplo, quando apresenta uma grandiosidade desmesurada, se transforma em um elemento que pode chegar a ser coercitivo.

Bem, depois deste parêntese volto à Esdi. Em nenhuma publicação presente na biblioteca da escola aparecia a Natureza e era evidente que tudo era Natureza, desde a programação de um bom livro até a construção de uma vivenda. Então, por que não falar dela, e diretamente? Algumas “coisas” que eu havia feito antes eram a própria natureza e nada mais. Afinal, de garoto eu havia vivido na Espanha, na Galícia onde nasci, que é um dos poucos lugares verdes daquele país e, ainda assim, ali a natureza era como se não existisse, já estava completamente modificada e domesticada em comparação com a do Brasil. Na história da cultura ocidental e na minha história em particular, o conhecimento da existência da América tropical talvez seja a conscientização de todas as possibilidades, de que o próprio paraíso estava na Terra.

E.K.: Aquelas pequenas viagens que você fazia pelo interior ou pelo litoral do Brasil, recolhendo materiais desgastados pela natureza ou fazendo pequenas intervenções no meio ambiente, são hoje em dia uma prática comum nas artes plásticas. Há muita gente trabalhando com “restos”, há muita gente coroando a si mesma com o título de “ecológico”.

F.C.: Bem… isto sempre foi a história da própria arte. Alguns abrem uma via e logo mais gente começa a transitar por ela. Ao mesmo tempo, gostaria de esclarecer que não me interessa o que se vende hoje como ecologia, pois claramente é uma mercadoria a mais no mercado. Vivemos numa doença que promove sonhos tecnológicos dentro da lógica do consumismo, destruindo e controlando todo e qualquer tipo de natureza.

Outro dia vi na televisão um programa onde índios se comunicavam através de um computador com europeus que acalmavam a sua consciência politicamente correta promovendo este encontro tecnoprimigênio: os nativos sentados na terra, no meio da sua aldeia, preocupados porque no aparelho não aparecia sentado no sofá do seu cômodo apartamento na Europa um entre vários dos seus magnânimos “amigos”. É impossível descrever a cena, aquelas criaturas realmente angustiadas se o amigo havia morrido ou estava doente, porque eles vivem a vida como respeito, integração e sentimento e mostravam uma reverência ante aquele encontro, coisa que nós já deixamos de fazer há tempos.

Aí está também o exclusivíssimo clube dos milionários “ecologistas” que imaginam “salvar” o planeta, aproveitando-se para ficar mais poderosos, mais publicitados, ou para comprar as reservas de água do planeta, quando todos sabemos que a água desde sempre foi uma arma estratégica.

A riqueza econômica é a causa da maior pobreza que se possa imaginar; o capitalismo atual se move em direção à lógica do apartheid, como diz o filósofo esloveno Slavoj Žižek: uns poucos com direito a tudo e uma maioria de excluídos. Tenho enorme curiosidade em saber como conseguem viver os homens que controlam este sistema: de onde vieram, quem foram seus pais, onde estudaram, onde pretendem chegar. É interessante perguntar-se por que a sociedade, em toda a sua história, nunca pensou em manicômios para este tipo de loucura ou em prisões para estas delinquências. Estas infrações não estão assimiladas como infrações. Manicômios e prisões não me parecem situações aconselháveis, mas por que foram construídos para determinados tipos de indivíduos e para outros não?

E.K.: Em 2008 você fez uma intervenção num espaço público na cidade de La Coruña, Espanha, onde um painel luminoso mostrava incessantemente ao público a frase: “Ato – impacto. Muitos impactos não formam necessariamente um ato.” Podemos então ler que isto sim é que foi um ato – impacto altamente crítico com determinado tipo de arte que se produz contemporaneamente? Quero ainda comentar em relação a isto que a sua arte introduz uma certa subversão nos valores estéticos, já que pode aparentar, a um observador menos atento, que é uma arte simplesmente formal dentro de cânones pré-estabelecidos, mas na verdade é tudo ao contrário, você contradiz a arte usando a própria linguagem da arte.

F.C.: Penso que a linguagem da arte é um constante laboratório de incertezas e complexidades cujos frutos vão ser recolhidos ou não dentro de alguns anos. Se tarda em detectar se algo funcionou como você imaginava. Comigo isto aconteceu com uma série que se chamava “Ciclo do Cupim” e cujas primeiras obras, madeiras semi-apodrecidas e cheias de canais feitos pelo inseto, foram pintadas perfeitamente por mim a pistola e com a pintura que se usava para automóveis. O acabamento era perfeito, era o que eu queria: sobre o podre, a aparência da vaidade ou o falso, como se tudo estivesse dentro do sistema, mas por dentro tudo estava putrefato. Hoje, desde a distância, penso que a imagem transmitia uma ideia de decorativo e parecia não falar do que eu pretendia. As obras que não toquei, somente expondo o material em seu estado natural, permeabilizavam de imediato uma aproximação de identificação.

Quanto ao que você pergunta sobre o projeto “Acto / Impacto”, é uma devolução de uma questão referida á figura do curador e ao sistema em geral, de perguntar-lhes sobre questões relacionadas ao mundo da obra de arte como espetáculo e frivolização, cujos tentáculos estão aí ao serviço deste espetáculo, geralmente vazio, velho, imediatista e por isto gasto e consumido sem mais. Leds de última geração e um complexo programa de computação permitiam que se lesse esse enorme painel a qualquer hora do dia ou da noite. Em princípio não há dinheiro para a arte, mas depende em que contexto de leitura esta se encontre.

E.K.: Como surge a ideia desta exposição “Bom dia, Brasil. Boa noite, Brasil”?

F.C.: Vivo entre a Espanha e o Brasil, aparentemente dois países com muita proximidade cultural, mas na verdade há anos luz de distância. A Espanha saiu de uma ditadura de meio século e entrou diretamente na era do consumismo. As pessoas, com estas facilidades e riquezas inesperadas, perderam de alguma maneira a sua perspectiva histórica, e sua memória ficou adormecida. Numa análise média e rápida, uma boa percentagem da população daquele país tem acesso, em termos materiais, a uma dignidade pessoal, e isto “acalma” a sociedade. Afinal, são europeus e a vida ali pode ter seus momentos de crise, mas sempre acaba por prevalecer o status aceito há centenas de anos.

O Brasil, um país jovem, sem o pesa da história e onde muitas questões estão por ser resolvidas, está no momento da transitoriedade onde todos os olhos – por curiosidade e por cobiça – estão postos nele. Penso que talvez por isto, de uma forma que vai acontecendo de maneira sincronizada, existe a possibilidade de que se possa construir uma nova via.

Por outro lado, uma das minhas pesquisas em arte está no uso da fosforescência como metáfora da energia. Sempre que tenho possibilidade ou me interessa algo, procuro trabalhar com mecanismos derivados do campo da ciência, sutis descobertas que fazem com que o homem possa tocar o que já existe na natureza. Assumo a impotência ante o absoluto e ao tempo de tudo aquilo que é natural. O tema da fosforescência é um tema muito simples, primário, mas que através dele me permito falar de várias coisas e metaforizar situações complexas e que sempre busco resolver da forma mais simples.

Queria falar do Brasil. É evidente que num mundo cada vez mais abrangente e imediato, esta exposição não tem como ideia o evadir-se. O planeta se transformou numa extensa prisão onde tudo está controlado e vigiado e os próprios meios de difusão atuam em dois sentidos opostos, isto é, informam e, ao mesmo tempo, controlam. “Bom dia, Brasil. Boa noite, Brasil” não é somente uma viagem onírica em direção ao cosmos, o que certamente será inevitável num planeta já há muito tempo claustrofóbico; mas, sim, a possibilidade de que ao menos o ato de sonhar seja livre.

Elisa Keller

Maio de 2011.

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* Publicado originalmente em: Via política – Livre informação e cultura. Rio de Janeiro, 29 de outubro de 2011.

[i] AAVV: La cultura transversal. Colaboraciones entre arte, ciencia y tecnología. Ed. Universidad de Vigo, 2010.